segunda-feira, 1 de março de 2010

Mito de fundação (Artigo sobre Angelo Agostini)


Nas últimas décadas, Angelo Agostini passou a integrar o cânone brasileiro das histórias em quadrinhos. Forma de expressão em busca de legitimação, as HQs encontraram no italiano um precursor

De certo, sabe-se que as histórias em quadrinhos surgiram no século XIX. Certezas além disso são poucas, ainda que não faltem teorias quanto à identidade de seu descobridor/inventor. Entre os candidatos está o italiano, que se naturalizou brasileiro, Angelo Agostini. Ele disputa o pioneirismo com o suíço Rodolphe Töpffer (1799 - 1846), o alemão Wilhelm Busch (1832 - 1908) e o norte-americano R. F. Outcault (1863 - 1928), dentre outros.

Todos eles produziram histórias que combinavam texto e imagem. Não se tratava da mera ilustração de algum cena pinçada da história, mas quadros que em sequência formavam uma narrativa, acompanhados por legendas que davam mais detalhes da trama, das ações de seus personagens e dos diálogos travados por estes. Uma descrição da maioria dos quadrinhos modernos seria quase idêntica a esta. No entanto, os estudiosos debatem a respeito de pequenos traços que consideram fundamentais. A criação de Outcault, as páginas dominicais de "Yellow Kid", é a que costuma ser mais citada como primeira HQ. Nela, o artista introduziu um elemento que não se via nos trabalhos de seus concorrentes: o balão de fala. Pode parecer pouco, mas os italianos chamam as HQs de "fumetti", numa referência à "fumacinha" que sai da boca de personagens, com textos dentro dela. Opositores da tese de que é dos americanos a primeira HQ, lembram que, desde a Idade Média, já havia imagens que traziam "filacteras", pequenas caixas de legenda ligadas às bocas das figuras representadas.

O mistério de Agostini

A história brasileira dos quadrinhos ainda é uma disciplina longe de gozar de credibilidade - à exceção de trabalhos como os do jornalista Gonçalo Junior ("A guerra dos gibis", "O mocinho do Brasil"), a maioria se atém mais a reforçar os mitos do que investigar, em pormenores, o trajeto desta linguagem. Por isso, Agostini como quadrinhista ainda é um mistério.

Como fica claro na leitura de "Poeta do Lápis", livro de Marcelo Balaban sobre a caricatura política do artista, ele não foi o único a aliar texto e imagem nos jornais do século XIX. Se não se espalhou por todo o País, a imprensa ilustrada, pelo menos, se fez presente de maneira marcantes na capital federal, o Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

"Os quadrinhos não foram exatamente um interesse de pesquisa em meu doutorado. Até onde acompanhei, há a tese de que o início da publicação das HQs no Brasil teria acontecido antes dos americanos, com as aventuras do Zé Caipora. Este ficou, porque era um tipo de história mais longa, que se desenrolava por alguns números. Mas havia outros exemplos, com histórias mais curtas, não só do próprio Agostini, mas também de outros caricaturistas", explica Balaban.

Nas histórias de Zé Caipora, Angelo Agostini apelava para um personagem-metáfora, o matuto que vinha da zona rural para a cidade e que, por meio de seus assombros, evidenciava as diferenças entre estes dois mundos. "As aventuras de Zé Caipora" apareceram nas páginas centrais da "Revista Ilustrada", entre 1883 e 1888. Há poucos anos, a editora do Senado publicou, em edição fac-símile, a íntegra deste material - além de uma história de Nhô-Quim, uma narrativa visual mais antiga, também produzida por Angelo Agostini. Zé Caipora ainda rendeu uma tese, no departamento de História, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, "Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal", de G. M. de Oliveria (disponível para download gratuito em www.teses.usp.br).

Marcelo Balaban lembra de algumas produções que encontrou que seguiam a mesma linguagem das "Aventuras de Zé Caipora": "Há uma história muito interessante, em que ele conta um pouco de sua própria história, não como uma autobiografia, mas como estratégia para falar do contexto".

O pesquisador no entanto evita falar no trabalho de Agostini como HQs. "Estas histórias são muito bem enquadradas, na lógica do século XIX, como série de crônicas que usam o personagem para falar da corte, apresentando uma visão de fatos e situações. Prefiro pensar em uma narrativa, antes de quadrinho, dizer que dessa imprensa ilustrada pode ter surgido, em algum instante, algo que viria ser a HQ. Era uma crônica visual".

Fique por dentro
Bibliografia rara

Livros sobre/de Angelo Agostini são raros (como a maioria dos nomes da história dos quadrinhos brasileiros). Os que existem, no entanto, são de notória consistência. Três livros são obrigatórios para quem quer conhecer melhor o mestre caricaturista. O mais antigo é "Cabrião". Lançado em 1982 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o livro traz fac-símiles do semanário humorístico editado por Agostini, ao lado de Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis, no biênio 1866-1867. Ganhou uma segunda edição em 2001, pela Editora Unesp. No ano seguinte, a Edusp publicou "As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora". Organizado pelo pesquisador Athos Eichler, o volume trazia uma história de Nhô-Quim, caipira às voltas com o impacto da civilização urbana sobre ele. Editada em 1869, é considerada a primeira HQ brasileira. Outro personagem do caricaturista, Zé Caipora apareceu 14 anos depois, em uma série de histórias curtas. Há cinco anos, "Diabo Coxo: São Paulo, 1864-1865" foi lançado pela Edusp. Trata-se de uma edição fac-similar do primeiro jornal ilustrado de São Paulo, de 1864 a 1865, redigido por Luís Gama e ilustrado por Angelo Agostini.

FONTE: DIÁRIO DO NORDESTE

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