quinta-feira, 1 de julho de 2010

Jimmy Corrigan: o livro mais difícil do mundo

Uma das atribuições do editor é evitar que o livro saia com erros. Não que seja uma briga justa. O erro faz parte do livro, ele pode vir de todas as formas e como você menos espera. Claro que um livro passa por várias pessoas e que, com o tempo, você vai identificando os focos mais graves (bibliografia e notas de livros de história, quantos momentos de terror). Fora que, em geral, são coisas menores de padronização, espaços duplos etc. E há aqueles erros que, embora mais graves, são totalmente contornáveis. Envolvem atrasar o livro, trocar alguma coisa, enfim. Nesses casos, você solta um longo suspiro e, em face do desastre, dá aquela caminhada fatal até o chefe para avisar do problema.

Mas o chato é falhar miseravelmente. A burrada extraordinária, o momento de distração que coloca tudo a perder, da pior maneira. Passei por pelo menos um desses aqui na editora, com o agravante de que o livro em questão era um dos que eu mais queria publicar desde que tinha entrado na Companhia, em 2005. Já no começo de 2006, escrevemos para a agente do Chris Ware, autor de Jimmy Corrigan: o menino mais esperto do mundo, perguntando sobre os direitos do livro. Na época, só conseguiríamos um preço de capa bom se dividíssemos o Jimmy Corrigan em dois volumes, coisa que o autor não autorizou. Uma editora estrangeira havia feito o mesmo, e aparentemente o resultado não ficou tão bom.

Colocamos a ideia na gaveta. Dois anos depois, quando começamos a bolar o selo de quadrinhos da editora, voltamos a discutir o livro. Alguns elementos de produção haviam barateado, e era possível publicar em um volume só, com um preço mais camarada. Novo contato com a agente e tudo certo. Encomendei a tradução do Daniel Galera, que já estava trabalhando havia um bom tempo na Cachalote com o Rafael Coutinho. Enquanto ele terminava, fomos cuidar das imagens.

Ali já deu para perceber que não seria fácil. O livro foi publicado nos Estados Unidos em 2000, o que em termos de softwares de diagramação — e de formatos de arquivos — é o mesmo que 1950. Nada era compatível, nada ficava direito. E quando aplicamos o texto nos balões e começamos a fazer testes no papel em que íamos imprimir o livro (detalhe: para ficar na cor do original, o papel teve de ser inteiro pintado de amarelo), mais problemas. Os traços pretos, que no original eram perfeitamente lisos, saíam serrilhados. Seria preciso mexer nos arquivos iniciais, jogando fora pelo menos dois meses de trabalho de diagramação.

Mas não havia o que fazer. Um dos baratos do Jimmy Corrigan é justo o design, e o livro tinha de ficar bonito. Toca o departamento de produção fazer milagre. Depois de uma certa arqueologia para adaptar os arquivos do livro aos padrões dos dias de hoje — e de alguns (muitos) testes —, chegamos numa linha preta que batia com o original. Tapinhas nas costas, hora de acertar os detalhes de um lado e de calibrar as cores do outro.

No primeiro front, dor de cabeça. O livro tem literalmente centenas de detalhes (o tradutor havia recorrido a uma lente de aumento a certa altura), e era preciso checar tudo, estabelecer padrões (que placas traduzir? o que fica em inglês?), fazer acertos finais no texto, enfim, parar em cada quadro para ver se estava tudo em cima. No que fica, aliás, o meu agradecimento ao Mário pelas cópias ampliadas.

No departamento de produção, as coisas não iam tão bem. Novos testes de papel mostravam uma diferença muito grande entre as cores da nossa edição e as do original. Enquanto o monitor indicava mais uma vez que o livro estava bom, no papel o vermelho saía laranja, o verde ficava azul, o marrom voltava para o vermelho, sabe-se lá o que ia acontecer com o amarelo. Entramos em contato com o autor, que gentilmente sugeriu que acertássemos as cores na gráfica, como ele havia feito quando o livro saiu lá fora. Mas se isso era comum em 1950, hoje em dia não é bem assim. Era preciso voltar ao arquivo mais uma vez e calibrar página por página, às vezes quadro por quadro, até acertar tudo. Quando chegamos num dos testes finais, o motoboy que foi pegar o pacote na gráfica caiu no caminho e, embora não tenha se machucado, o mesmo não pode se dizer do nosso teste.

Enquanto isso, eu estava finalizando a capa. Como tudo no livro, a capa é repleta de microtextos, piadinhas escondidas, detalhes microscópicos. Até colocar o logotipo e o nome da editora foi uma dificuldade. Mas uma hora deu tudo certo, rodamos os cadernos, rodamos a capa, olhei as duas coisas e a gráfica então montou o livro. Dois dias depois, chegam os primeiros exemplares. Alegria geral, ainda que uns dois meses depois do prometido. Fui mostrar para um dos colegas de editorial, que também gostava do livro e que tinha feito muita força para que publicássemos.

“Ué”, ele disse, “por que o nome está diferente na capa e dentro do livro?”. Dei risada. “Olha como ficou bonito!” “Sim, mas dentro está escrito ‘O menino mais esperto do mundo’ e na capa saiu ‘O garoto mais esperto do mundo’.” Uma, duas, três ocorrências — para piorar, o nome do livro aparece dezenas de vezes ao longo da história — de “o MENINO mais esperto do mundo”. Puta. Que. Pariu.

A notícia começa a se espalhar, e logo uma pequena aglomeração se forma no corredor para discutir o que fazer. Sigo suando frio e com problemas de respiração. A solução mais óbvia é desencapar o livro, rodar a capa novamente e remontar tudo. Em casos normais, isso é perfeitamente possível. A única coisa é que é preciso cortar uns poucos milímetros do livro em cima e embaixo, para que ele possa caber de novo na máquina. Só que, no caso do Jimmy Corrigan, isso envolve cortar ilustrações e texto, já que em vários momentos o autor aproveita a página cheia. Isso e aquilo depois, e o único jeito é jogar a tiragem inteira fora. Dores agudas no braço esquerdo.

O Luiz, colunista mais ativo deste blog e também nosso chefe, estava viajando. O fuso horário ainda me obrigaria a esperar até o dia seguinte para dar a notícia por telefone. Antes de ir para casa, fui até a diretoria saber o tamanho do prejuízo. Basta dizer que foi a mais longa das noites.

Nesse meio-tempo, a Geane, que trabalha na produção e que passou muito aperto com os arquivos do Jimmy Corrigan, foi para casa e telefonou para uns amigos. Ela tinha uma gráfica antes de entrar na Companhia, e conhece muita gente do ramo. Numa das conversas, teve a ideia de trocar a capa em brochura, que é a mais comum nos livros, por uma capa flexível, dessas um pouco mais grossas que usamos de vez em quando. Por um detalhe técnico — a capa flexível é um pouco maior do que o miolo do livro, então a máquina dela não exige o corte —, conseguiríamos reencapar o livro e não teríamos de jogar tudo fora. Três vivas para a Geane, por favor.

O telefonema fatal do dia seguinte acabou sendo um pouco menos dramático. O livro iria atrasar (de novo), mas o desastre não havia sido completo. E como agora checo milhares de vezes, imagino que não vá errar mais o nome de um livro na capa. Quanto a errar de novo, bom, todo mundo erra.

Por: André Conti, editor da Companhia das Letras. Trabalha nos selos Quadrinhos na Cia. e Penguin-Companhia, entre outros projetos.

FONTE: BLOG DA COMPANHIA

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